Thursday, February 04, 2010

Homenagem a um grande mulher portuguesa

Morreu Rosa Lobato de Faria (1932-2010)…

• Fiquei naturalmente chocada quando soube da notícia, pois embora só recentemente tenha me apercebido da sua escrita genial, do seu humor extraordinário, e posso com toda a certeza dizer que sem ela ficamos mais pobre. Porque a sua contribuição para o panorama literário, dramático e musical foram preciosos demais para o pouco reconhecimento que ela mereceu. Ainda há pouco tempo falava dela como escritora a uma amiga e dizia como era surpreendente esta faceta dela, pois através da escrita ela demarcava-se em absoluto da imagem de Tia snob que emprestou a muitas personagens e que a faziam parecer muito inacessível. Foi com uma alegre surpresa que verifiquei a falsidade desta impressão no dia 13.06.2005, quando com uma simpatia impressionante ela me assinou o livro de poemas que hoje elejo como favorito na categoria de poesia: " A Gaveta de Baixo" e lamento nunca ter tido oportunidade de lhe dizer que sim gostei muito desta história de amor e que já tinha lido outras coisas dela e que me tinha surpreendido, quer pela força dos textos, quer pelo humor picante e delicioso que não nos deixa indiferentes. E quanto á carreira dela de actriz, ainda me lembro de numa novela ela viver nas torres das Amoreiras e ser uma mãe muito chata que infernizava a vida aos filhos. Não me lembro do nome da novela mas sei que era em plenos anos 80. De qualquer modo, também vou sentir falta das letras que ela fez e fazia para muitas canções desde fados a músicas do euro festival já que ela tinha a capacidade cada vez mais rara de brincar com as palavras e fazer das músicas eternos hits. Lembro-me da música de uma novela recente da sic, "Podia acabar o mundo", a música da Dina "amor de água fresca." E como estas muitas outras, que nunca esqueceremos e que dificilmente encontrarão par em talentos mais actuais. E gostava de si, querida Rosinha, vou sentir a sua falta, mas vou continuar a ler os seus livros e desse outro plano fique a saber que é a minha escritora preferida, de todo o panorama literário português. E a melhor homenagem que posso fazer é deixar o Shakeaspeare em standby e transcrever o meu livro/poema favorito que me autografou na feira do livro de Lisboa de 2005, e aconselhar a todos os que me lêem para procurarem conhecer melhor o talento imenso desta mulher extraordinária, pois além deste livro poema que conta com ilustrações maravilhosas de António Oliveira Tavares, deixou muita poesia e romances dignos de nota. Até sempre, descanse em paz e seja feliz sempre:

I

1. Quando o móvel chegou era novo. Cheirava
Como nós a mel de abelhas a avenca
Da floresta.
O tampo doce
Pedia cera, panos macios.

As gavetas aceitavam quase tudo.
Por respeito
Guardámos apenas linhos bordados
Lenços antigos, leques.
Uma caixa de charão cheia
De bugigangas que nunca nos atrevemos a deitar fora
Um pedaço de renda um búzio
Um dedal de prata uma
Boquilha loira de nicotina
Uma borla dourada
Três dados de marfim.

Na gaveta da esquerda ficou
À espera de ser reclamado
Um livro emprestado de poesia
Com uma assinatura desconhecida
E uma data.

Outras gavetas ficaram vazias.

Só o tempo na sua sabedoria
Poderá enchê-las.

Festejámos o móvel como se
Fosse um amigo.

2. Agora o móvel tem um espelho
Por cima. Estreitinho
E muito largo
Que é uma forma de ser
Dos rectângulos.

A sua alma de espelho
Reflecte à noite o perfil
Da lua entre cortinas
De manhã os nossos rostos ensonados
De tarde as esperas.

Agora o móvel tem uma terrina antiga
Rosas brancas livros. Cheira
Menos a mel e mais a alfazema.

O outro livro já não está na gaveta.

Sabemos agora que o seu antigo dono
Não virá reclamá-lo. A estante
Onde moram os poetas acolheu-o
Com a generosidade que os poetas
Costumam ter.

A gaveta da esquerda tem agora
Muitas fotografias de momentos
Passados. Memórias de almas roubadas
Paralisadas no tempo.
Donde vínhamos, para onde íamos
As fotografias não mostram. Por isso,
Dormem sorridentes ou amuadas
Na gaveta da esquerda.


A caixa de charão ganhou mais
Tesouros inúteis. Dois isqueiros
A tampa de uma boa caneta
Um baralho incompleto um colar
De missangas rebentado uma
Tesoura desajustada por cortar linhas
Indevidamente.

Na gaveta de cima há agora documentos
Papéis carimbados certidões cartões
Disto e daquilo.

Para pôr alguma distância entre
A burocracia e a vida fechamos
Essa gaveta à chave.


3. Já ninguém controla o espaço nas gavetas.

Lembro-me de guardar ali a lã
Semidobada numa tarde
Em que chegaste mais cedo
Com olhos de viagem
E as mãos de urgência.

Falaste-me de Paris amaste-me
Tiraste para mim a mala
Do alto do armário.

Beijámo-nos infinitamente
Com javas e impressionistas no coração.

Quando partimos
O móvel ficou a olhar-nos da penumbra.


4. As gavetas ficaram a abarrotar
De lembranças para os amigos.

Há também guias Michelin postais
Vitórias de samotrácia hermafroditas
Almoços na relva banhistas.

Há dias felizes fechados nas gavetas
Como um aforro para os dias difíceis.

E quando o luar vem vagarosamente
Amotinar as sombras e realçar
O invisível
O móvel parece satisfeito
Com a sua gravidez de segredos.

Só a gaveta de baixo permanece vazia.


5. Hoje não vieste.

Eu já tinha visto nos teus olhos
Aquela ausência distraída
Aquela meia-verdade
Aquela curva fugidia do dorso
Como se nascessem asas
E tivesses de voar.

Há dias que
A nossa cama é um lugar para dormir
A nossa mesa um lugar para comer.

Antes não era assim.

Pus flores de sabugueiro na entrada
Doce de ginga na compoteira Haendel
Por toda a casa.

Olhei-me no espelho por cima do móvel
E achei-me bonita
Com o teu amor estampado no meu rosto
E a roupa florida
Dos dias mais longos.
O gato esperou-te
Com a ponta negra do rabo
Arrumadinha sobre as patas juntas.

Da gaveta da esquerda tirei
Aquela fotografia que nos mostra
Abraçados com a Torre Eiffel ao fundo
Num cliché
De felicidade pateta e entalei-a
Numa moldura de pinho.

Gelei o vinho e acendi o fogo.

Não vieste.

6. O sol já não bate na esquina do móvel
Como se todas as horas
Fossem cinzentas

O vento breve que atravessa a casa
Perdeu a memória do teu cheiro
Tem uma forma triste de oscilar
Nas cortinas de estremecer
A fímbria da camilha

Já não traz um recado de feno
Nem um rastro de voos azuis

Perpassa nas minhas sandálias
Beija-me os pés geme
Na frincha da porta que fechaste.


7. O dia-a-dia ainda está aqui
Mas a tua ausência empurra-o
Para uma banalidade quase
Rídicula quase trágica
Quase sórdida

Tento sublimar os pequenos
Gestos rotineiros seguro
O pão e penso toma-me
Entorno a água e digo
Bebe-me

E de súbito a saudade é uma
Gazela furtiva
Parada silenciosa ao pé do nosso
Móvel
Roça a cabeça nos puxadores das gavetas
Fala de distâncias que não conheço
De uma ausência
Que não cabe no peito

Seguro o ventre
Enrolo-me no chão

E grito.


8. Reaprendo o caminho das mãos
Através do inútil.

Releio incansávelmente
A tua única carta.

Não choro, penso.

Quero ainda seguir o teu voo
O trilho que soube convidar os teus passos

Sentir o que sentes
Levar o coração ao teu destino.

Estendo as mãos para a luz
Ficam acesas como se o teu corpo
As convocasse.

Tecemos um amor indestrutível.

A vida é que não sabe.


9. Vieram os amigos. Enrolaram
Os pés nos tapetes. Recusaram
O gelo na bebida
Para não dar trabalho. Constataram
A tua casa cheira a alfazema,
É da cera do móvel, deram
O seu recado solidário
E partiram sem compreender.

Estranham que eu diga asas
Ressentem que eu mencione espaço
Escandalizam-se com os meus olhos secos.

Já de saída
Uma mulher que mal conheço
Instila no meu ouvido uma verdade
Que faço por esquecer.

Fico encostada ao móvel. De mim
Caem todas as folhas
Do meu primeiro Outono.


10. Com que pedra de sal
Com que promessa
Com que pássaro solto pela casa
Com que folha de louro
Com que sonho
Com que lua entornada no alpendre
Com que livro de quem
Com que sonata

Temperarei a dor da tua ausência
O silêncio
O vazio na minha cama
Os gritos do meu corpo
O pão por repartir da minha alma

Com que chuva
Lavarei o rumor dos teus passos
No magoado coração dos dias

Com que pranto
Afogarei teu rasto
Com que manto de lava
Com que mar.


11. Quero que me leves ao rio
Disseste
Quero que me leves ao rio
E faças remos dos meus braços
Para te navegar de madrugada

Quero que me leves ao mar
Disseste
Quero que me leves ao mar
E me faças de espuma e de vento
E me ofereças um peixe de prata

Quero que me leves á fonte
Disseste
Quero que me leves á fonte
E de mim faças cântaros brancos
Abraçado por tuas mãos d'água

Quero que me leves para casa
Disseste
Quero que me leves para casa
E me deites em rendas de lua
Transbordado na tua almofada.


12. Vou á procura dos meus velhos poemas
Encontro um do tempo da bonança
Tão totalmente seguro da sua eternidade
Que agora sim os meus olhos chovem
Uma poalha mansa, matinal.

Os teus dedos dobaram os meus sonhos
Com fios de lua beijos e segredos…

De joelhos sobre os calcanhares
Inauguro a gaveta de baixo.

II

1. Há uma conspiração
De silêncio entre
O inverno e o branco embainhado
Dos meus lençóis.

Neva todas as noites
Na minha cama.

É por isso que ás vezes me levanto
E construo poemas solares
Estórias de verão
Livros incendiados.

É por isso que aqueci o meu ventre
Com esta breve palpitação
A que chamo
Estrela
Borboleta
Carícia

Boa nova.



2. Guardei na gaveta de baixo
A flor que trazia nos dedos
À hora de advinhar-te.

Primeiro
Foste apenas uma ideia
Que me segurou na porta
Da cozinha quando ia
Meter numa garrafa verde
Um malmequer amarelo.

Fiquei ali
À espera que te transformasses
Em certeza ou em música.

Lembro-me que havia um sol bonito
A enquadrar a cesta dos pimentos

Lembro-me do chiar mansinho
Da panela da sopa

Lembro-me do gato.

Olhou-me
E li nos seus olhos feiticeiros
O recado que os teus
Ainda não podiam dar-me

Soube que tinhas sido
Arremessado à praia do meu corpo
Pela espuma desfeita
Das vagas de Setembro.

Como um grão de areia
Uma pepita de ouro
Um búzio

Pude então mover-me andar
Sorrir de novo
Abrir a gaveta de baixo
Guardar a flor do meu segredo.



3. O meu corpo entretém-se.

Tece os teus dedinhos de pés
Que são
Juntamente com o sorriso involuntário
O que mais nos deslumbra
No recém-nascido

O meu corpo ocupa-se

De ti que o ocupaste
E entrelaça veias nervos
Unhas músculos cabelos

O meu corpo transcende-se

Inventa
O teu imponderável coração.


3. Eclodes
Como um nenúfar no lago
Da minha espera

Não posso imaginar nada mais belo
Assim feito de luz
E carne e pétala

Feito de lua nova e madrugada.

E já que bebes todos os meus rios
Deixa passar a mágoa
Como um barco
À hora do crepúsculo

Deixa passar a mágoa

Não quero adivinhá-la na névoa
Dos teus olhos

À chegada.


5. Com a mesma lama
E os mesmos astros com que te
Construo

Arquitectei um livro
De arcos de volta inteira
Botaréus rosáceas
Vitrais policromos

Um novo livro
Onde portas em tímidas ogivas
Abrem para penumbras
Mistérios amores segregados
Enredos antigos

Mas não ouso rasgar-lhe janelas

Ainda

Receio ver o mar.


6. Ando grávida grávida grávida
De ti que és verdade
Deles que são ficção.

Hei-de pari-lo antes de ti
Ao meu estúpido livro
Para que nos deixe em paz
Na nossa solidão partilhada.

Para que não
Roube a tua seiva
O teu sangue
O teu leite

Não é o teu gémeo é teu vampiro.

Então
Puro e sábio
Segredas-me que devemos amá-lo

Devolveu-te a esperança dizes
Abrasou de palavras
A catedral da ausência.


7. Quando ele nasceu

Com suas mãos de papel
E seus olhos de letras

Guardámos uma cópia
Na gaveta de baixo

A decisão foi tua

Disseste-me
Com grandes gestos de pés
E ondas subaquáticas
A vibrar no meu âmago

Que devia tê-lo à mão porém
Resguardado de olhares

É por ti
Pelo teu corpo de asa palpitante
Que hão-de florir de branco
As rosas do alpendre.


8. Os dias são mais longos

O vento cheio de sol e polén
Entontece-me um pouco

Mas levei-te a passeio
Oscilando
No teu pequeno mar

No meu peito sinto já
O mistério das fontes

As nascentes sagradas
Que hão-de valer-te na fome
No sono na doença
Na sede

E no amor.


9. À noite
Encostas a cabeça
Ao rumor do meu coração
E perguntas onde está o teu pai.

Como dizer-te os caminhos
De um vagabundo de sonhos
De um nómada
De imagens desconhecidas?

Às vezes, conto, ele tenta
Pintar a alma dos silêncios
O suspiro dos pássaros
O coração das cerejeiras

Ninguém sabe de que azuis
Anda enfeitada a sua mágoa
De que cinzentos
Desponta a sua alegria

Há-de trazer-te uma tela
Ardente de todos os sóis
Molhada de todos os rios

Ou tão somente
Uma pequena pedra
Que encerre
A explicação dos ventos.


10. Tirámos da parede
O espelho rectangular por cima
Do nosso móvel

Porque não quero
Suspeitar do fazedor dos orvalhos
Que habita a minha íris

Fomos buscar
A tela de brancos improváveis
E aldeias-fantasma

Pendurámo-la com esforço
Em seu lugar

Para que te habitues
Com a luz e a sombra
A neblina e a terra
O barro e o granito

A que chamamos pai.



11. E assim
Imperceptivelmente
Vamos sendo mudança

Eu tu e a casa

Já não me servem os vestidos
Floridos de outras primaveras

A ti já não te basta
O teu mergulho quente
Os regatos de sangue

A casa trocou de mão
Objectos e cheiros
Sugestões de temperos
Flores e frutos

Fiz o teu ninho no meu quarto
Ao lado do coração.



12. Vimos chegar as andorinhas
Conjugarem-se as estrelas
Impacientarem-se os ventos

Agora
Esperamos o verão do teu nascimento
Tranquilos, preguiçosos

Tão inseparáveis as nossas fomes
Tão emaranhadas as nossas veias
Tão indestrutíveis os nossos sonhos

Espera-te um nome
Breve como um beijo
E o reino iluminado
Dos meus braços.

Virás
Como a luz maior
No solstício de Junho.


III

1. Estou ajoelhada a procurar
Saudades
Na gaveta de baixo

Ouço a chave na porta digo
Maria estou aqui a remexer
Na gaveta das mágoas
Já me custa

A tua figura descuidada
Preenche
O rectângulo da porta

Com a mão esquerda seguras
O blusão de ganga sobre o ombro
Na direita o livro de capa lilás
Um raminho silvestre

Dá-me um autografo, dizes.

Levanto-me pesadamente
Arredondo o ventre até ao coração
Para que saibas
Que nem por um momento
Me deixaste sozinha

Beijas-me infinitamente como dantes
A minha garganta está tão apertada
Que a língua não consegue mover-se
Ao encontro da tua

Sem palavras
Deponho nos teus braços
Para que a carregues
A nossa primavera consagrada

Devagar
Com a planta feliz do pé descalço
Empurro adio encerro
A gaveta de baixo.

Rosa Lobato de Faria
Dezembro de 1998.

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